Amar é tão desigual. Sim, parece com todos os medos e as decepções que estão escondidas dentro de cada um de nós. Seria de se admirar se assim não fosse, afinal, existe maior definição do que a própria contradição? Ainda me lembro que certa vez ao ler os versos de um poema, não pude deixar de perceber que aquilo me feria profundamente, como se ao ler aqueles versos, eu acordasse para a minha verdadeira vida e que todo o resto não passava de devaneios de uma jovem sonhadora ou de alguém que amou demais. Ainda não sei. Bem, em todo caso, gostaria de conversar um pouco mais com vocês sobre o que aconteceu comigo e as consequências dos meus atos. Se vocês estão lendo isso, significa que mais alguém considerou que era importante o suficiente para não ser esquecido, porque querendo ou não são as lembranças que temos que determinam aquilo que somos.
"Amar é como a saudade, você não sabe muito bem o que é"-Memória número 3
No fim da tarde de novembro passado, aquela saudade me veio de novo. Já fazia algum tempo que não a sentia, parecia o encontro com um velho amigo: aquele desconhecimento estranho trazido pelo tempo, ainda assim, os fatos pareciam tão claros quanto o sol que desdenhava em sorrir no meio das pedras britas que se juntavam formando a calçada destruída de cimento. Lá, bem logo no fundo do beco, havia uma cafeteria com cadeiras de madeira em bambu e janelas transparentes, dando a impressão de um lugar familiar. Quase dava para ouvir no chão atabalhoado de madeira, os passos de Ricchardo-o maitre- a andar de um lugar para o outro, se preocupando em ser o mais cortes possível. Talvez eu tenha me enganado, mas sentada na cadeira mais distante do lugar estava uma menina cabisbaixa, lendo um livro sobre o amor. Eu a conhecia bem:
-Louise, tudo bem?- perguntei com um certo ar de preocupação
-Ah, é você, sente-se- e parecia tão etérea quanto sempre
-Estava aqui pensando no que você me disse da última vez que nos vimos, ainda se lembra?
-Sim, sobre a solidão do amor, não é mesmo?- respondeu de maneira ríspida
-Isso mesmo, e então, conhecendo o amor, a solidão acabaria?
-O que você faz quando um livro termina?- já nem me espantava mais
-Eu paro de ler?- tentei não soar irônico, mas parecia ser impossível nessa situação.
-Sim, mas a resposta não é apenas isso, é a decorrência dela- falou ajeitando o aro do óculos em um tom auto-explicativo.
-A decorrência de não ler um livro mais é porque ele já não fornece mais nenhuma expectativa, pelo menos a maioria dos livros, já aqueles que você guarda alguma recordação especial, ou que gostou de como foi escrito, de alguma personagem, o que você faz? Lê de novo.- completou aquilo com um silencio intuitivo.
-E cada vez que eu leio de novo não há sempre a mesma personagem me esperando? Afinal, a história não é sempre a mesma?- devolvi com mais perguntas.
-Não!! Pare de pensar na história como uma cadeia de eventos sucessivos e repetidos. A verdadeira percepção de mundo deveria se encontrar na desconstrução das coisas. A história sempre muda, e aí não se enquadram os fatos pois eles se moldam de acordo com as percepções humanas. O amor não é diferente, sendo produto da mente humana, ou melhor produto de emoções e formas sensíveis, é transformado por elas!
-Mas então...- retruquei de maneira ainda surpreendida- o que seria do ser humano sem a segurança de querer que as coisas façam sentido? Tudo estaria condenado ao caos!!
-Errado!! -E parecia aqueles tenores determinados, tamanha a entonação da sua voz-
-Uma coisa necessariamente não é o contrário da outra, não existem duas soluções para tudo. Para as explicações mais complexas o ser humano simplifica sua visão de mundo para que através de antagonias separe e controle as pessoas e coisas. Deus e Diabo, Ying e Yang, certo e errado... A lista não tem fim.
-Mas, se tudo aquilo que você busca na vida é alguma coisa que faça sentido, o amor não te oferece isso? Diversas possibilidades? Você mesma admitiu outras vezes que o amor é uma construção pessoal, então a base dessa construção me parece vazia- rebati prontamente
-Louise, você pode até folhear o livro, mas se não escolher uma página para começar, de que adianta tê-lo nas mãos?- um pequeno sorriso saiu do canto dos seus lábios.
-Algumas escolhas não dá pra se fazer. Quem não já viu sua personagem favorita morrer? A página só é escolhida quando você tem certeza que ela não te machuca ou quando ela não é conhecida- respondeu com a mesma convicção de antes.
-Mas o que te dá a certeza de escolher a página quando tiver o livro?- insisti
-Depende. Se já tiver lido aquele livro, simplesmente abrirá a página que quiser, mas, se por um momento se deixar a leitura ou o acaso te levar, vai perceber que nenhuma página é igual, nem mesmo aquelas que você já leu. As páginas são as pessoas como já deve ter percebido, e o livro é como a sua vida- concluiu em um tom melancólico.
Nenhum de nós parecia querer falar nada, sabe, acredito nessa coisa que dizem por aí, que o silêncio tem seu tom poético. Podia ser verdade ou não, mas queria acreditar naquilo com todas as forças. Nenhum de nós parecia querer sair daquele momento.
-Desculpe, eu tenho que ir- disse em um tom desconcertante. E foi embora a passos largos pela rua.
Desde aquele dia nunca mais a vi, mas acredito que a mensagem que Louise quis passar não era de uma pessoa que não acreditava no amor, muito pelo contrário: ela o defendia com todas as suas ajeitadas de óculos e em suas conversas com seu amigo imaginário. Folheando agora ,sem parar, o livro que ela esqueceu na mesa aquele dia, lembro das coisas desconcertantes que falava.
Abri de supetão o livro e escolhi uma página qualquer como quem não sabe o que quer. A cafeteria estava abandonada. Fechara poucos meses após do sumiço da nossa amiga. Um vento frio soprava com a noite que já vinha chegando. Bem na última página do livro, em um canto rabiscado como um garrancho estavam as indicações de um endereço:
Jasper Street, 25, Oaklamond
Ficava há algumas quadras dali. Coloquei o livro debaixo do casaco que vestia e corri tropeçando desesperado e ofegante. Ninguém podia roubar de mim as minhas escolhas e a minha saudade, embora não soubesse bem o que aquilo era...
CONTINUA...
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